A propalada fuga de um cidadão às malhas da justiça apela a uma conclusão cartesiana: se o juiz tivesse decretado a prisão preventiva, este cidadão não continuaria, seguramente, a desfrutar do precioso bem que é a liberdade.
Contudo, à luz da lei e dos princípios, a fuga desse cidadão ao cumprimento da pena de prisão a que foi condenado não resultou de deficiência legislativa, nem de incorreta decisão do juiz.
As decisões dos tribunais assumem um risco, ainda que atenuado por diversas válvulas de segurança. Este risco não é diferente daquele que as tarefas mais simples do quotidiano comportam para a restante sociedade. O cirurgião, no decorrer de uma intervenção cirúrgica, pode não conseguir salvar o paciente apesar de aplicar todas as regras da legis artis. Após a morte do paciente, conclui-se que a adoção de um tratamento diferente teria salvado a sua vida.
Também o Direito Penal está carregado de decisões que têm inevitavelmente, um risco subjacente.
Quando o juiz concede a um recluso uma precária de dois ou três dias, há o risco de o indivíduo não regressar à prisão. Não correndo esse risco, o juiz impediria a ressocialização do cidadão.
Do mesmo modo, o juiz que condena um arguido a uma pena suspensa, apesar de o juízo de prognose ser favorável, corre o risco de o mesmo reincidir. Não correndo esse risco, não daria oportunidade de ressocialização a cidadãos que podem ser úteis à sociedade.
No limite, quando absolve um cidadão, o tribunal corre o risco de deixar escapar um culpado. No entanto, este cuidado constitui uma importante válvula de segurança para não condenar um inocente.
Mas será que o sistema penal poderia funcionar doutro modo?
O sistema penal, tal como as restantes estruturas da sociedade, não tem capacidade para evitar todos os riscos inerentes aos comportamentos humanos. O juiz, por muito traquejado que seja, não consegue prever, com precisão, comportamentos humanos e muito menos circunstancias externas que lhes provocam alterações.
Regressando à problematização do cidadão que fugiu ao cumprimento da pena de prisão, tome-se o seguinte exemplo. No âmbito de um mesmo processo, dois arguidos em liberdade cumpriram escrupulosamente as medidas de coação aplicadas pelo tribunal. No entanto, dois anos decorridos, um dos arguidos, que fora condenado em pena de prisão efetiva, colocou-se em fuga, não se apresentando na cadeia para cumprir a pena a que foi condenado. A conclusão mais óbvia seria afirmar que o tribunal correu um risco ao não decretar a prisão preventiva do cidadão que veio a fugir. Para não correr este risco, o tribunal teria de ter aplicado a prisão preventiva aos dois cidadãos, o que conduziria a evidente injustiça: o cidadão que fora absolvido teria cumprido dois anos de prisão preventiva, acabando, mais tarde, por ser absolvido.
Importa ter presente que, diariamente, os nossos tribunais proferem decisões em que cidadãos presos preventivamente são absolvidos em julgamento, o que é sempre uma tragédia para os arguidos, para as famílias e para a sociedade. Caso o tribunal não corresse algum risco, inevitavelmente, as consequências seriam bem maiores, quando não virassem a tragicomédia.
Seria interessante analisar os dados relativos aos arguidos que presos preventivamente são absolvidos, por comparação aos arguidos que aguardam em liberdade o julgamento e, em face de uma pena de prisão, encetam uma fuga.
Acresce que os cidadãos foragidos têm à perna um conjunto de instrumentos processuais que lhes aperta de tal forma o cerco que lhes limita a ação, por forma a, na sua esmagadora maioria, acabarem por se entregar, mais tarde ou mais cedo.
Acontece que os cidadãos presos preventivamente que acabaram por ser absolvidos não têm outra alternativa que não olharem para quem lhes roubou a liberdade.
A fuga de um ou outro cidadão tem de ser vista com a ponderação cuidadosa que o juiz coloca na decisão de não prender cidadãos que mais tarde poderão ser absolvidos. Mais vale absolver um culpado do que condenar um inocente ou, dizendo de outro modo, mais vale deixar fugir um cidadão condenado do que manter preso durante vários meses um cidadão inocente.
Ora, tendo o juiz observado a lei e os princípios, a fuga de um cidadão integra-se dentro do risco inerente a uma decisão penal.
Carlos Melo Alves
Artigo por: Carlos Melo Alves